Se teve uma situação que me comoveu muitíssimo, me entristeceu e também me tranquilizou, foi quando durante a pandemia, minha filha decidiu abreviar o sofrimento da cachorrinha "Xuxu da minha vida", que a acompanhou desde os três anos de idade. Xuxu agora estava com 17 anos e convulsionava sem parar na busca de fazer ainda alguma festa para a minha Anna. Ela estava consciente a bichinha. Mas não conseguia andar sem ter uma crise.. Pouca oxigenação, mesmo com o respirador. E tudo já tinha sido tentado na clínica que a internamos para que sofresse menos do que em casa, quando sua garganta parecia fechar e ela tossia para que a respiração fosse possível.
A veterinária falou dessa possibilidade. Nesse momento não me lembro exatamente se chamava eutanásia ou se deram outro nome. Era poder morrer, com menos agonia. Não sei com que forças Anna escolheu esse fim para a Xuxu. Uma opção de amor, certamente. E foram fortes, as duas. A medica nos explicou como seria. E não vou relatar aqui por uma questão muito ética. Quem quiser aprender, que estude Medicina. Ou pergunte a quem sabe dizer sobre isso. Anna segurou a sua cachorrinha que viveu muito até. Acho que viveu só pelo afeto da minha filha, para ter mais um tempo de dar e receber. Então, Anna segurou a Xuxu quase desfalecida já, enquanto a veterinária fazia o procedimento. Em menos de um minuto ela se foi. Tranquila, amparada por que mais amou nessa vida. Sua dona. Os papéis ali se inverteram. No passado, Xuxu com poucos anos, era adulta, e latia para alertar se Anna tivesse fazendo alguma estrepolia que parecesse estar em perigo. Agora era a jovem Anna, a decidir o final de sua velhinha.
Saímos dali meio anestesiadas. Já nem pensávamos no medo de pegar covid, que ainda nem vacinas tinha. Éramos só sentimento e pensamento. Uma letargia. E a mim, especialmente, tranquilidade. Fizemos o que precisava ser feito. Não hei de negar de que também estava tomada pela serenidade de supor como pode ser simples uma eutanásia no humano. A lei brasileira não permite o suicídio assistido. Tema que deve ser tratado com o máximo de cuidado e a delicadeza que merece. Ainda mais nesse país onde as coisas costumam acontecer de um jeito meio sem controle, assustador. Mas logo me dei conta da lista de países na Europa e América Latina, onde é permitido. É um conforto diante do inevitável. Claro que é.
A atual decisão do maravilhoso poeta Antonio Cícero, que morreu na Suíça, mexeu com todos nós. Uma das maiores questões do humano- não a única- tem a ver com a finitude. Alias a falta de humildade de muitos poderosos tenta esconder essa verdade. Somos mortais. E alguns se pretendem imortais com sua força, tão ilusória. Não foi o caso de Antônio Cícero. imortal por sua poesia, na Academia Brasileira de Letras. Mas poetamente sabedor de nossa tão efêmera existência. Ainda consciente preferiu ir-se com dignidade, ante a devastação inexorável provocada pelo Alzheimer, do qual ja descobriram o teste detector, mas não a cura. Melhor morrer. Com certeza melhor. Espero muito que tenha sido tão tranquila sua partida, quanto foi a da Xuxu.... Você até pode pensar- que estúpida, comparar a morte de um ser humano com a de um cachorro. Não me parece. Eu também preferiria partir como a Xuxu, se tivesse essa escolha diante do impossível de suportar.
Vejo a mãe de uma amiga, que de repente, perdeu a consciência. Retira a fralda que precisa usar, se suja inteira. Nem sabe o que está fazendo, ou quem é. Precisa ser amarrada a cama para não cair. E minha amiga, perdendo também ela as forças do viver, por testemunhar esse final tão cruel. Certamente se fosse possível prever quando tudo aconteceria, talvez ela tivesse escolhido outro destino. Por isso dentre outras coisas, um testamento vital é importante.
E assim, vamos para O QUARTO AO LADO, filme mais recente de Almodóvar. Nas cores de Almodóvar. No jeito Almodóvar de falar das coisas mais sórdidas com tanta humanidade. E crueza. E por que não, o fim da própria vida, em um momento menos aterrorizante do que o final dos finais. Tilda Swinton e Julianne Moore fazem uma bela dupla. Mulheres maduras. Ainda em um momento em que a beleza não se transformou em decrepitude. Longe disso. A questão ali é um câncer nas vertebras, no qual experimentos fracassaram em detê-lo. O personagem de Tilda não quer, com toda razão ao meu ver, esperar que a medicina e a própria incidência da doença desumanize seus últimos instantes. Aluga uma casa de campo - um cenário lindo. E chama a personagem de Julianne para acompanha-la. A amizade vence o pânico e o horror da situação.
Eu pensei que fosse mais puxado, difícil de aguentar assistir. Mas não é . Almodóvar é um mestre do cinema mesmo. Se fosse um filme americano, teria muito sangue e cenas de sofrimento físico atroz- por que os americanos parecem não prescindir disso- seria pouca sensibilidade... talvez. Se fosse um "Bergman" como ouvi gente criticar: "detestei, Almodóvar sendo Bergman", que bobagem- teria diálogos existenciais infindáveis. Não é assim. É a crueza da vida, simples assim: a filha da Tilda, se importa pouco com a morte da mãe - "a escolha é sua" , sem mais. Não tem ferimentos na carne, vômitos, nada disso que justamente a personagem queria evitar. Almodóvar também. É uma morte que não vemos acontecer. Mas o cineasta nos faz acreditar que foi muito suave, a julgar pela expressão da morta ao ser encontrada. Parecia dormindo. De batom vermelho e roupa de cor vibrante.
Diante disso que acabei de narrar, gostaria muito que esse texto e esse dia terminasse com a frase de uma música de Chico Buarque: "o mundo compreendeu, e o dia amanheceu, em paz"...É isso.