Decadas atras, eu lia os livros de Carlos Castaneda. Gostava muito mesmo. Do antropólogo que se tornou discipulo de um mestre índio, e com ele fazia viagens psicodélicas e de auto-conhecimento. Em um desses livros, " O Presente da Águia", Dom Juan, seu mestre, pede a Castaneda que entre em uma caixa, e só deverá sair dali, quando toda sua vida for repassada, ressignificada, reconhecida por ele.
Lembrei desse livro de relance, estava assistindo um filme, de 2001 com Jennifer Lopez. Ela faz uma policial e o ator Jim Caviasel,, o personagem de um homem que perdeu seu filho e sua mulher em um acidente. A personagem de Jennifer tinha também seus sofrimentos: sua infância havia sido permeada por um pai que batia na mãe, ela torna-se policial, e um dia coloca seu pai na cadeia. O que lhe dá limites, o suficiente, para nunca mais repetir a brutalidade, voltar a viver com a mãe e até renovar votos do casamento embora tenha renegado a filha policial que lhe deu essa essa lição.
O filme que assisti agora, e que me fez pensar em Castaneda, remete a lembrança de meu próprio pai. Tenho pensado nele esses dias, memórias vem e vão. Ele morreu de H1N1. Uma ironia. Por toda a vida, foi importador de vacinas. E quando ainda convivíamos, ele me contava como muitas vezes os medicamentos , vacinas, e pastilhas para serem postas em caixas d'agua de prédios no combate a dengue, ficavam esquecidas em algum canto daquilo que se chama ministérios, secretarias da saúde dos mais diversos governos, e não eram distribuídas convenientemente.
Mas não são essas as lembranças que hoje me fizeram pensar em meu pai. É que a nossa cabeça pensa , voa e volta para esse tema que não nos deixa ignorar- o corona vírus. A possibilidade do fim. A fragilidade do corpo humano. Também o acirramento das contradições sociais, apesar do vírus tão democrático, como o estão chamando: não escolhe, mata a qualquer um. Tem crianças hoje na periferia vivendo de arroz, quando tem, dizem os jornais. E isso vem de antes. Apenas piorou agora. É essa a nossa escolha? É essa a nossa escola, repito da postagem anterior.
Retorno ao Presente da Águia, livro de Castaneda, e a sua caixa. Onde estamos nós nesse momento, senão em nossa caixa? Dias de confinamento, nos dá a possibilidade de parar, de "não fazer nada com pressa", como diz o filme da Jennifer e do homem por quem se apaixona. Antes, o personagem de Jim, alertado do perigo por sua mulher, teimou em não diminuir a velocidade em um dia de chuva causando o acidente que mata a ela e ao filho pequeno.. "Me perdoe a pressa. É a alma de nossos negócios. Ah não tem de que. Eu também só ando a cem", canta lindamente Paulinho da Viola e também nos coloca em contato com nossa velocidade máxima e sem muito sentido. Que nesse momento, foi obrigada a desacelerar.
Na caixa vou aquietando os pensamentos. As vezes meditando. Nem sempre, as vezes só pensando na vida mesmo. Enquanto faço faxina na casa, cozinho, lavo, peço comida no super mercado pelo aplicativo.. Que tempo é esse? Tempo de ver? Momento de compreender? Quem sabe, de concluir. Tudo junto, na caixa. Tudo simultaneamente. Diante daquilo que é maior que nós, inapreensível. O real. A vida como ela é : chacoalhão. A vida é o que é.
Assim seguimos. Uns desesperados, ansiosos, com medo de perder seus status, outros com voz. dando suas versões sobre a coisa toda, cada um em sua especialidade. Mas não tem conversa fiada: é a vida e a morte diante de nós.. Podemos fazer poesia. Falar bonito, nos assustar. O virus segue implacável e até que uma vacina seja descoberta, o mundo ja revirou e revirou. E podemos contar: quanto mais tempo ficarmos na caixa, mais oportunidade para um mergulho em nós. Precisamos mesmo. . Aproveitemos.
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