09 novembro 2020

Era um menino com Síndrome de Down. Era um menino em uma sala inapropriada para sua idade. A gente sabia tão pouco, mas ele sabia de si. Era um menino de 8 anos. Era um menino.

   Aos 18 anos, tive meu primeiro emprego. Era uma escola para crianças, uma ex-escola religiosa, que estava passando por mudanças importantes com sua nova diretora, uma grande educadora. Cheguei até lá não por que tivesse um forte currículo. Aos 18, principalmente no Brasil, dificilmente um estudante fez sequer um estágio. Eu cursava duas faculdades: Musicoterapia e Sociologia. E sobrava alguns horários na semana. Um amiga minha, filha da nova diretora da escola, me apresentou a sua mãe, que me convidou para trabalhar. Que alegria. 

  Meu primeiro emprego era também uma escola, em uma escola. Ali aprendi tanto, que vem comigo até hoje. E o mais interessante, é que aprendi fazendo. Eu dava aulas de teatro e musicalização.  Para ser mais precisa, eu utilizava a musicalização como expressão. Não que desse aulas disso. Dava aulas, com isso. Estava muito ligada as escolinhas de arte. A todo um universo que desde pequena me foi apresentado, então aos 18 eu tinha mesmo alguma intimidade com uma mistura de coisas que somada, era uma linguagem a ser transmitida. 

Um dia eu fiz uma peça com as crianças na faixa dos oito anos. Era sobre o Brasil. História do Brasil. E pedi a elas para escreverem redações. Que se transformaram em texto da peça. Os cenários nos fizemos. Era cheio de panos ondulantes em nossas mãos: caravelas. E muitos ritmos e sons. Essa diretora me pergunta: você conhece Paulo Freire? Não. Eu não conhecia. Ela me fala dessa pessoa espetacular, criativa, humana, por tanto tempo exilada. Me diz que ali naquela peça eu estava fazendo coisas que Paulo Freire faria: aquelas redações falavam do universo de cada criança. E não exatamente da história do Brasil. Mas era também história do Brasil. Uma coisa se aproximava da outra. Caravelas, com aquelas carinhas, ávidas. 

Naquele mesmo ano, entrou um menino com síndrome de Down na escola. Ele não começou no início do ano letivo. É o que me lembro. E foi colocado em uma turma de crianças com cinco anos. Como assim cinco anos? Ele tem oito! Aquilo me chamou muito a atenção. Eu não conhecia bem a síndrome de Down. Mas também não desconhecia. Tive um colega no colégio, que sua irmã estudava na sala ao lado. Biinha. Como se fosse Biazinha. Biinha. Biinha era bonita, tinha cabelos compridos e lisos. Usava franja. Tinha um rosto um pouquinho diferente. Eu tinha cinco e ela,  quatro anos. Nessa idade a criança realmente aprende a incluir. Não discrimina nem pergunta. E Biinha era especialmente suave e simpática. E assim, aos 18 anos me causou estranheza sim que um menino de oito estivesse em uma turma de cinco anos.

Para uma criança de cinco anos, um menino de oito é muito grande. Em tamanho inclusive. E mesmo que esse menino tenha algum deficit cognitivo, em uma porção de coisas ele terá avanços maiores que uma criança de cinco anos. Portanto, essa boa vontade em encaixar no melhor lugar, que hoje soaria mesmo a essa educadora, como meio absurda e discriminatória, ali via-se como uma possibilidade a ser experimentada. Não sem consequências. Logo as crianças começaram a estranhar que esse menino dizia "coisas feias". Eu não me lembro se ele sabia algum palavrão. Mas estava lá na frente quando o assunto era sexo, sua curiosidade era imensa e sua censura nem tanto. Então falava coisas de arrepiar uma criança de cinco anos. Mas não uma de oito. Por que as crianças de oito, aquelas que fizeram a peça da caravela não poderiam conviver com esse menino e ele com elas? Claro que poderiam sim. 

 Hoje, décadas depois, avançamos. Mas ainda estamos lidando com a inclusão como uma espécie de consentimento, um favor. A diversidade entra no politicamente correto, mas as escolas, são poucas realmente preparadas para acolher crianças em sua singularidade, seja ela qual for. Aquele menino não deu certo na escola dos meus 18 anos. Ou a escola não deu certo para ele, embora a diretora, super a frente de seu tempo, entendesse que deveríamos ao menos tentar essa convivência. E os pais acabaram tirando-o de lá. 

E quantas crianças  com alguma questão acabam saindo das escolas regulares por que não encontram ali um lugar de pertença? . Por que tantas vezes as diferenças são vistas como defeitos? Quando amadureceremos como sociedade, como uma comunidade que se preze ? Gente despreza gente. É o que ainda temos para hoje e causa tanta dor.  Vamos fazer um minuto de silêncio em homenagem a nossa capacidade de acolher sem escolher- você sim e você não...não mais.

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