09 setembro 2013

São eles que contam para mim. E por quem você tem um carinho e um amor infinito, mesmo que já tenha partido faz tempo?

Vovó Paulina e Vovô Sales

publicado em 21 de de Outubro 2005  por: Pauline Herbach

Museu da pessoa





Para contar estar história direito eu precisaria fazer pesquisa. Tem muitas coisas que não sei. Mas vou falar daquilo que ouvi deles e do que vivi com eles, então.

Minha avó chamava-se Paulina, mais foi apelidada de Paula, assim que meu avô a conheceu. Ele que todo mundo chamava de Sales, para ela era Louis. Seu jeito meio gringo de dizer Luís, do nome dele, José Luís.
Quando eu nasci, eles moravam em Niterói. Estado do Rio de Janeiro. Minha avó vem de São Bento do Sul, Santa Catarina. E meu avô de Santos Dumont, Minas Gerais. Se conheceram quando ele, jovem promotor, visitou a cidade dela. Que na época, mocinha, vendia tecidos na loja de seu pai. Ela tinha orgulho de contar para nós, que gostava de usar o sapato forrado combinando com o chapéu da mesma estampa e não cansava de dizer, como se fosse uma lição de sabedoria, que mulher tinha mais é que ser vaidosa, como ela sempre foi e admitia na maior alegria.

Vovó era mesmo linda. Loura, olhos azuis, traços perfeitos num rosto bem redondinho. Devia fazer um super sucesso e conquistou ou foi conquistada por vovô a primeira vista.

A história do casamento não é muito clara. Como foi, como não foi. Só sei que casaram e moraram em muitos lugares por causa do trabalho de meu avô.

Quando minha mãe e tias eram crianças -são três irmãs- o casal se mudou para Niterói. E meu avô passou a ter um escritório de advocacia no Rio de Janeiro, além de ser Procurador da Caixa Econômica. Sempre teve fama de durão e temido, na rua. Em casa, para sua Paula, era obediente feito um garotinho comportado. Vovó era uma dona de casa organizada e afetuosa. Grande fazedora de massas italianas, embora suas origens fossem polonesa, judaica e alemã, sempre foi uma delícia estar junto deles e comer alguma coisa gostosa feita integralmente por ela.

Vovô por todos os ângulos era super-bem tratado. Até as unhas dele era ela quem cortava. Eu me admirava deste exemplo de casamento, de dedicação mútua, de união estável. E o apartamento deles para mim era a calmaria total. A começar da janela: moravam em frente à Praia das Flechas. E dormir ali, com as ondas do mar batendo nas pedras, era um encantamento a mais.

Vovô contava inúmeras vezes a história da Dona Baratinha para os netos, claro que os mais novinhos eram melhores ouvintes. Mas o engraçado é que a história nunca mudava e a gente adorava mesmo assim. Vovó mostrava seu afeto com muitos beijos, abraços e apertões, além dos quitutes feitos na hora. E outros artefatos: todo neto, além das filhas, tinha uma colcha de retalhos e outra de crochê feitas por ela com grande habilidade e estilo. De vez em quando inventava umas modas, e fazia suéteres e meias para nós. Esse amor através das mãos ia além da família e ela sempre colaborou com montes de sapatinhos de bebês, constantemente inovados em cores e feitios, para a Obra do Berço.

Olhando para eles dois, vovó e vovô, sempre percebi que cada ser humano é uma linda biografia.

Simples, honestos e cheios de riqueza interior, eram companheiros, como muitos casais daquela época, em que o casamento era levado mais a sério e a noção de união, em todos os sentidos, vinha a reboque.
Eles deram duro juntos. Vovó chegou a costurar para fora numa época em que meu avô precisou estudar mais, para crescer na profissão e ainda ajudar sua mãe e irmãs.

Criaram as três filhas com cursos de piano, balé e Inglês. Valores que meu avô julgava importantes, principalmente o Inglês, ele dizia. Quando todas casaram, eles se sentiram livres para viajar. Mesmo com meu avô tendo horror de avião, foram juntos para Europa, Japão e o Brasil conheciam todo. "A gente tem que prestigiar nosso país". E lá iam eles para o Pantanal numa época em que o termo turismo ecológico estava longe de existir.

Vovó nunca esqueceu as origens e todo ano visitava a família em Santa Catarina. Eu mesma, a neta mais velha, fui algumas vezes a Lençol, cidadezinha ao lado de São Bento do Sul, onde a maior parte dos parentes passou a morar. Cheguei a conhecer Bárbara, a "omã", mãe de minha avó, que morreu aos 92 anos. Em Lençol a maior parte das casas era de madeira no estilo colonial alemão. A pequena população na época, preferia se comunicar na língua saxônica. E toda aquela enorme diferença, do que era uma cidade grande, dizia mais ainda sobre a personalidade de minha avó. Uma pessoa altamente adaptável. Com um lema de vida, que sempre chegou a mim sob a forma de conselho: "leva as coisas mais na flauta menina", "você leva tudo muito a sério, não pode não".

Mas eu sei que , por trás daquele sorrisão constante, daquela vaidade sempre atualizada no penteado bem feito e no vestido novo criado por ela, que a tornava invariavelmente "a mais elegante da festa" e daquele ar meio mandão, havia uma perspicaz observadora do mundo, incapaz de falar mal de qualquer pessoa ou de fazer uma observação atravessada, mas muito consciente de todas as fraquezas e conflitos que envolvem a espécie humana. Então, vez por outra, quando era preciso, o aconselhamento vinha certeiro. E isso fazia da casa da minha avó um lugar ainda mais seguro e gostoso de ficar.

Deixa eu falar um pouco mais do vovô: quando eu era adolescente, me deu uma viagem a Londres. Eu estava animada, tinha algumas amigas morando lá e ele concordou que eu poderia fazer a mesma coisa. Nessa época me contou que ele mesmo na juventude tinha conhecido o mundo inteirinho, através da Marinha Mercante. Que novidade Eles ainda eram cheios de surpresas

Já em Londres, cada vez que eu me sentia em perigo, sozinha ou com qualquer aflição, meu avô me ligava, como se tivesse tido um presságio. Muito tempo depois, um pouco antes de morrer, ele que era um ateu confesso, me confidenciou que tinha mesmo uns certos dons premonitórios, que sonhava com seus amigos que já haviam morrido e conversava com eles. Mais surpresas

Quando meu filho nasceu, o primeiro bisneto deles, vovô fez questão de me oferecer uma série de coisas, super importantes para quem está começando a vida. E outra vez compreendi um pouco mais do jeitão de ser daquela figura que falava de si em raríssimas ocasiões, não perdia um jogo de futebol na Televisão e adorava o Chacrinha, que considerava o maior comunicador do mundo. Meus avós filosofavam pouco e demonstravam muito.

Alguns anos mais tarde, vovô que já havia escrito alguns livros sobre Direito, resolveu se tornar um romancista. Foi um livro atrás do outro, como se tivesse nascido para isso e descoberto o dom antes tarde do que nunca: o primeiro foi um romance muito sensual. Depois vieram vários policiais, com tramas complexas, perfis psicológicos bem definidos e tudo o mais. Aí ele decidiu publicar um. E o lançamento na sede da Ordem dos Advogados do Brasil, com centenas de admiradores e amigos do "ilustre causídico" como alguns velhinhos chamavam pomposa e afetuosamente, foi uma glória que ele merecia viver antes de se despedir dessa existência.

O último livro era a história de um homem que após se arriscar para salvar a vida de uma menina e ser atropelado, tendo morte clínica, é levado por extra-terrestres e passa dezenas de anos em outro planeta. Um dia volta e, como se tivesse acordado de um sono profundo, não se reconhece velho, no espelho. Talvez fosse ele mesmo, tentando entender o que a idade estava fazendo com a sua imagem interna e externa.

Nisso vovô já estava doente: diabetes e muitos bombons e sanduíches de lombinho com cerveja, escondidos da minha avó, que acreditava ter se tornado uma enfermeira alemã de grande sucesso.
O coração estava fraco e havia o perigo de amputar uma perna por causa de um ferimento que não cicatrizava. Eu o visitava quase todos os dias e dizia: você vai morrer Ele respondia valente: " eu já fiz tudo que queria. Se tiver que morrer, morro, mas não deixo de fazer as coisas que gosto".

Eu estava com ele quando se foi. Era final de ano, e num quarto de hospital de uma clínica de coração em Botafogo, Rio de Janeiro, dizia brigão: "quero voltar para casa, no ano novo não vou estar mais aqui" Morreu na madrugada do dia 31 de dezembro, aos 77 anos. Suas últimas palavras foram: "aproveite mais a vida" Parecia minha avó falando.

Ela teve um luto muito especial. Mais tarde comecei a estudar e entender este fenômeno, enquanto uma amiga desenvolvia uma tese de mestrado sobre o assunto. Vovó primeiro sentiu raiva por ter sido abandonada. E ela que nunca disse um ai de ninguém começou a fazer certas queixas de quando meu avô era vivo. Passaram-se uns meses e deu todas as suas roupas, distribuiu sua extensa
biblioteca e ampliou a sala do apartamento com o cômodo que servia de escritório do "ilustre causídico" em casa. Aos poucos, as boas lembranças de meu avô voltaram. Mas nunca se conformou com os bombons que ele comia escondido, fingindo seguir a dieta que ela preparava com tanta convicção. Foi a traição imperdoável. De resto, tudo bem.

Vovó viveu mais 11 anos. Sempre com o conforto que construíram. E vovô fez questão de deixar tudo organizado para ampará-la na velhice. Assim, era totalmente independente. Viajava com amigas muito mais jovens do que ela, e continuava sendo a "rainha da excursão", "a mais simpática de todas", sempre relatando os elogios aos seus lindos olhos azuis. As amigas contemporâneas foram indo embora. Morrendo ou ficando senis. Isso impressionava minha avó,mas ela resistia bravamente. Voltou a Europa. Foi aos Estados Unidos para conhecer o bisnetinho "chaponezinho" ela não pronunciava o jota de jeito nenhum- que nasceu em Tóquio, mas os pais mudaram para San Diego meses depois. Sempre havia um bom motivo para continuar viva e radiante, termo que adorava usar.

Até que chegou a vez dela ficar doente - câncer de mama. E de tanto medo de encarar, resolveu não contar para ninguém. Soubemos três anos depois, quando a coisa estava grave e nenhum tratamento havia sido feito. Vovó tinha, não sei como, conseguido esconder dos médicos um carocinho à toa, uma alergia.

A primeira operação parecia ter sido um sucesso. Ela ainda passou seu 88 aniversário feliz da vida, certa de que estava curada. A festa foi na casa da minha tia - a filha do meio, para onde ela se mudou relutante por uns tempos, depois da cirurgia. Depois foi tudo muito rápido: a segunda, a terceira intervenção. Ela ficando magrinha, perdendo a tonicidade muscular, nós escondendo a gravidade da doença que já tinha tomado o pulmão. E ela perguntando amedrontada: eu vou morrer? Nessas horas eu lembrava do meu avô e seu jeito de perceber as coisas tão de frente. Vovó precisava de uma mentirinha para aguentar a situação toda. Será mesmo? Não sei. Mas mentimos e dissemos a ela que estava ficando boa. Eu mesma inventei uma metáfora: dizia que estava se fortalecendo, fortalecendo o espírito. E ela inventando e tomando caldos de carne fortificantes. Somente no finalzinho, de tão fraca, foi perdendo a lucidez. Começou a falar em Alemão e a gente não entendia mais nada. Dois dias depois se foi. Eu e minha tia, a filha do meio, estávamos com ela. Na cama do hospital, para onde foi levada somente na sua última noite, de camisola bonita e unhas pintadas de vinho, como ela gostava, assim partiu minha avó. Do jeito que sempre foi: tranqüila, serena, do bem, e apesar de tudo vaidosa até o fim.

Dois anos se passaram. Ano passado, quando minha filha nasceu, minha mãe encontrou sem mais nem menos dois sapatinhos de tricô no armário, feitos pela vovó. "Não tinha notado que eles estavam lá antes."
Deviam estar. São estas coisas do amor familiar que de tão fortes, as vezes parecem até sobrenaturais, de tão naturais que são.

Dia 20 de setembro Paulina Brusky Sales faria aniversário. Assim, aproveito para homenagear em dose dupla, com a minha versão da história desse querido casal.

Paulina Brusky Sales e José Luís Sales, meus avós maternos.
                                                    Vovó adorava violetas e samambaias

Pelo que li, escrevi este texto em 2001.( não me lembrava mais)  Por alguma razão publiquei em 2005 no Museu da Pessoa. ( Gosto bastante da ideia desse museu genial: de historias de gente). Hoje me deu uma saudade imensa dos meus queridos avós, pessoas firmes,  de grande caráter. E fui procurar esse registro. Estava lá, como uma relíquia para eu lembrar. Compartilho com vocês com muito carinho em 9/09/2013. Do jeito que está. Sem as correções que até faria. Deixo assim, no original, como foi  escrito: na emoção.

6 comentários:

  1. é muito bom resgatar textos do passado e as lembranças de pessoas queridas. beijos, pedrita

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    1. Não é Pedrita? Coisas de cancerianas.... tb. Beijos!!

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  2. Saudades de você e se suas histórias, moça, histórias como essa, que nos fazem viajar junto a uma família que não conhecemos e nos envolver com os seus integrantes como se fôssemos de casa... Legal ver que os filmes andam em dia (eu quase vi "Antes da Meia-Noite", mas deixei passar...) e a prosa, também. Eu ando por lá, em meio àqueles morcegos que seguem zanzando pela minha cabeça a contar histórias... Abração e apareça!

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  3. Ah que bacana, deu uma geral no blog! Que bom. Obrigada por ter se envolvido com a narrativa sobre a minha familia.
    Um abraço, vou "aparecer" por la.
    Cam

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  4. Oi, Cam!!
    Eu estava estranhando o Bárbara, mas agora entendi tudo!!
    Bárbara é o nome da sua bisavó, não é mesmo!
    Eu fico muito emocionada com textos que lembram o passado. Como um quebra cabeças, tento encaixar as peças também da minha família. Que mulherão era a sua avó. Seu avô tinha mesmo que se apaixonar e não deixar escapar. Ele, com as características que nós mulheres gostamos tanto... fingia-se mandado... ora, ora! Que sábio!
    Ainda bem que não retirou nada do texto, está perfeito!
    Sempre dizem que quando estamos próximos da morte, a vida passa como um filme e que retornamos ao lugar em que fomos mais felizes. Sua avó não morreu inconsciente, morreu feliz!!
    Beijus,

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  5. Obrigada pelas palavras carinhosas com relação a minha avó e ao texto.
    So que a Barbara no caso é de um blog que resolvi fazer sozinha, por alguma razao ficou grudado nesse aqui com email de Camelia e esse outro de nome Barbara, tirou o nome de camille e colocou esse. Por mais que esteja tentando ser autonoma, acho que vou precisar de uma ajudinha. Bjos!!!

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